A mãe tinha apontado a prateleira de cadernos que poderiam ser escolhidos de acordo com o número de folhas e tamanho pedido na lista de material, mas principalmente pela capa. Personagens famosos, capa dura, alto relevo encarecem um caderno que por dentro tem exatamente a mesma função de um caderno com capa simples: anotar. A menina gostou, o limite deveria facilitar a escolha. Mesmo assim, enquanto a mãe comprou todo o resto do material, a menina deteve-se diante de uma única prateleira. Olhava, comparava, escolhia, pegava. Olhava outra vez, tentava achar motivos para levar este e não aquele. Imaginava-se colocando aquele caderno dentro da pasta, depois imaginava a mesma coisa com o outro. Imaginava-se fechando o caderno e vendo aquela capa no final da aula e não a outra que deixaria ali, na prateleira, para sempre, para nunca mais voltar, para nunca mais vê-lo, nunca escrever nele uma linha, uma letra, uma data. Dois cadernos iguais não amenizavam a angústia. Cada caderno era único. Era esse o dilema. Para seu alívio, a lista pedia três cadernos. Pelo menos três cadernos ficariam sobre a sua guarda e seriam bem tratados, teriam uma vida boa. Pensou se levava três iguais porque eles formariam um grupo de cadernos trigêmeos, o que amenizaria a solidão deles ou se levava um diferente do outro para que eles – os cadernos – pudessem ter um convívio mais divertido. Com muita dificuldade decidiu levar cadernos diferentes, cada um representando sua pilha. A mãe, desconhecendo aquele universo mental silencioso, perguntou com simplicidade:
-Ainda não escolheu?
Ah se fosse assim, tão fácil!
- Tô quase.
O problema estava quase resolvido, dois dos três cadernos já estavam em seus braços, escolhidos. Mas o terceiro causava grande incômodo. Estava entre dois muito parecidos, diferentes somente na cor de fundo. O caso era que um deles, somente pela cor, ficaria para trás, um deles ficaria com o estigma de ter sido rejeitado numa escolha tão rigorosa, tão demorada. Esse sim teria motivos para ficar deprimido a vida toda. Descartado depois de ser tirado e recolocado na prateleira tantas vezes! Foi até a mãe:
- Posso levar quatro?
Em meio às contas no tumulto da loja, a mãe não ouviu a voz baixa da menina que não repetiu a pergunta e foi em silêncio até a prateleira para devolver o quarto caderno. Antes de sair, fez um carinho na capa e disse baixinho:
- Tchau, boa sorte!
Ficou com o de fundo marrom rajadinho de preto. Não foi exatamente o que mais gostou, mas achou que o caderno de fundo azul rajadinho de preto, encontraria mais facilmente um dono que o achasse bonito, afinal capa marrom rajadinha de preto é uma coisa muito triste. A moça da caixa registrou os preços. Estavam comprados. Depois da escolha estava um pouco melhor, mas não conseguiu se livrar, assim rapidamente da estranha sensação. Será que algum dia, alguém poderia entender tal melancolia? Não importa. Estava feito. Não tinha mais como voltar atrás. O azul rajadinho de preto estava à mercê do destino. Para sempre afastado. Imaginava a loja fechando. A porta de correr sendo desenrolada com o gancho, lá de cima até a pedra mármore do chão. Dentro, as prateleiras no escuro.
Quando a tristezinha vinha lá no fundo, cruzava os dedos bem forte e imaginava o caderno azul feliz. No dia seguinte, a loja ia abrir.
Muito real para mim essa crônica!! Até hoje fico indecisa qdo escolho um caderno... E a papelaria para mim, na época de comprar material era uma festa! O mais legal é que minha avó é que colocava uma etiqueta na capa de todos os cadernos e livros meus e assinava o meu nome... Dizia que era a letra mais bonita da família....Saudades! Parabéns!
ResponderExcluirMe remeteu a minha infancia e a compra dos amteriais escolares que tanto me faziam vibrar......mas tb a angustia de não poder ter todos os cadernos de capa dura(mais caros) ecomo tb os de 200 folhas(mais caro ainda)que eram o objeto dos meus desejos na epoca!!Adorei! é sempre muito bm lembrar da epoca da nossa infancia, quando pequenninhas frustrações nos ensinaram a ver um mundo real!PArabéns!beijos
ResponderExcluirA escolha é um aprendizado. Por vezes é acompanhada pela dúvida, pelo erro, pelo arrependimento, pelo alívio, pela alegria... Uma explosão de sentimentos contida no simples e complexo ato de escolher. Bonito texto. Parabéns!
ResponderExcluirEu também sofria um pouco dessa 'síndrome' dos objetos inanimados.
ResponderExcluirDeixa-me relatar um pequeno exemplo dessa situação e que me fazia sofrer bastante:
Quando éramos pequenos e viajávamos, eu sempre levava um monte de doces (porcarias) para comer no caminho e no destino em si. Então, todo papel da bala ou chiclete que eu abria para comer, eu guardava no bolso porque achava que se jogasse ele fora - ali naquela cidade -, ficaria perdido e não teria como voltar pra 'casa'. Meu bolso era um lixo só.
Ainda hoje - com quase 40 - tenho estes pensamentos, mas não deixo a coisa evoluir... rs
Será que essa esquisitice é de família?
Dar sentimentos a seres inanimados deve ter lá a sua explicação psicológica. Uma espécie de treino pra lidar com a vida real, pode ser...O bacana é a exploração dos sentidos: cheiro da borracha e da mochila nova, o espetado no dedo da ponta do lápis e as mais lindas cores das canetinhas. Tudo tão simples, tão lindo. Inesquecível.
ResponderExcluirSimplesmente linda. Adorei essa crônica,rs. As dúvidas, a tristeza, a esperança, o sorriso, a escuridão, a luz. Muito boa. Parabéns. Agradeço por compartilhar boas crônicas com o mundo.
ResponderExcluirSaulo, você é um presente para mim e para todos que te conhecem. bjs
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