sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A infância acaba





















Esta semana senti realmente saudades da minha infânicanos70. Senti saudade de sentir medo dos garotos fantasiados de Bate-bola no carnaval. Eu, do lado de dentro do quintal, com a cara enfiada no portão, corria para casa, assim que eles apontavam na esquina. Senti saudade de sentir medo dos fogos de artifícios na virada do “Ano Bom", como dizia minha avó. Senti saudade de ter medo do “Sr. Alfredo”, personagem que vocês conhecerão, quando aparecer em uma das crônicas. Senti saudade do medo que eu tinha de trovão, de ficar presa em elevadores e em banheiros. Eu, como todas as meninas da época, tinha medo da mulher loura. Eu tinha medo dessas coisas, na minha infância. Tinha medo da cara do Presidente Geisel – eu achava que ele era estrangeiro! (também, com esse nome), tinha medo da Ditadura, mesmo sem saber o que era. Tinha medo dos ETs que apareciam no Fantástico, medo das Pirâmides do Egito, medo de um menino que, diziam, vivia numa bolha... Medo dessas notícias que criança não entende.

E tinha também vontades: de ser algumas das minhas personagens favoritas, de casar com os meus heróis preferidos – todos eles, um de cada vez, na sua época de alta temporada. Tinha vontade de "trabalhar na Sessão da Tarde". Vontade de ser bailarina. Vontade de conhecer um país, que uma garota bem metida chamava de “States”, e onde o meu pai tinha morado antes de se casar com a minha mãe. Ele tirava fotos como se fosse um galã. Lindo! (e é claro que eu pensava, “Se ele não tivesse voltado, eu teria nascido lá ou aqui”?). Vontade de ser de circo e de fazer expedições para a África, ao mesmo tempo, na mesma vida. Circo nas terças e quintas, África, segundas, quartas e sextas... Ai, ai, nem saber dividir o tempo e colocar a África para o início da semana e o circo para o final, eu sabia. Eu gostava das diferenças (ainda gosto) e dizia que ia tomar café para ficar preta e ia casar com um japonês para meus olhos esticarem. Queria me modificar.


Eu podia ser tão inocente que um dia, sentada no colo do meu pai, ele disse, olhando para o céu:

- É... Amanhã é o último dia do ano!!!

E eu perguntei:

- E depois, nós vamos todos morrer?!

À tarde, eu tinha a mania de imaginar o que estaria acontecendo em outro lugar, um lugar bem longe de onde eu estava, exatamente naquele momento. Imaginava a savana (que na época, eu nem sabia que tinha esse nome) com o sol baixando e depois ficando sem luz. Ficava intrigada como podia a Terra ser um planeta redondo, e os japoneses – que me disseram que viviam do outro lado do planeta, ou seja, embaixo – podiam viver de cabeça para baixo. Sem cair?!! Engolindo! Bebendo água sem babar! Fazendo tudo pendurado, meu Deus?


Pior, eu tentava imaginar "O Nada" (vocês faziam isso?):

“Se a casa, a rua, o bairro (do bairro, pelos meus limites, eu já pulava para o planeta) e o planeta não existissem. Se não existissem as pessoas, nem os animais. Nada. Nadinha, nadinha”.


Mas não tinha fim, sobravam sempre as mãos. Eu explicava:

- É que eu imagino o Universo, aí vem um par de mãos fazendo uma trouxinha nos Planetas, nas Estrelas, em tudo, como se fosse uma toalha de piquenique, dando um nó e jogando tudo fora, mas aí sobram as mãos... Então, eu imagino outra trouxinha, outro par de mãos e outra toalha para jogar fora as mãos que tinham sobrado, mas aí, outra vez, sobram as mãos...

E meu pai tinha tempo para me dizer:

- Pára de pensar nessas coisas que você vai ficar maluca. Eu já tentei imaginar o nada e nunca consegui...

Com onze anos, eu já tinha bastante altura e alguns adultos, daqueles bem sem assuntos, sempre diziam a mesmíssima coisa, todos os dias, quando me encontravam com a minha mãe e o meu irmão voltando da escola:

- Essa menina está cada vez mais alta, não é possível !!!!– isso, logo depois de comentarem a minha magreza.

E eu, na minha infância e pré-adolescência, podia ter medo de ser a mulher mais alta do mundo. "E se eu não parasse de crescer? Até morrer? Como ia ser?"

Tinha medo de ser muito feia, feia fora do normal, horrorosa. Sabem “feia de doer”? Pois é. Imaginem esses dois medos juntos: a mulher mais alta e mais feia do mundo!!! Putz, era demais. Era medo pra ninguém botar defeito.

Aprendi a ter medo de falar mentira. Minha mãe tinha me ensinado assim:

- Cada um tem um lugarzinho, lá no céu e, cada vez que você fala uma mentira, nasce uma manchinha amarela no seu lugar.

Eu, que gostava de inventar o que não tinha acontecido, gostava de imaginar, gostava de contar e aumentar, passei a ficar imaginando o céu azul e o meu lugar com algumas manchinhas amarelas que iam se encaixando como peças de um quebra-cabeça. A didática setentosa funcionou, eu fiquei com medo do meu pedacinho no céu ficar todo amarelo e eu não poder entrar nele, por causa disso. Durante um bom tempo, eu pensava, inventava, mas não falava.

Eu tinha medo de levar choque no chuveiro, de engasgar (uma espécie de maluquice), tinha medo de agulhas (maluquice dois). Tinha medo e também curiosidade do desconhecido, do escuro. Medos da infância, que depois passam.


Esses dias, ouvi a última frase de uma conversa de duas mulheres mal humoradas:


- A única coisa ruim da infância é que ela acaba.


(... Durante a semana, escolho a crônica a ser postada, tenho meus critérios. Nesta semana - de confronto e violência no Rio de Janeiro - a crônica é este apanhado improvisado sobre os medos e vontades normais de crianças de qualquer época, de qualquer lugar. Nenhuma das crônicas já escritas fazia sentido).


Se eu pudesse realizar um só desejo impossível, pediria o poder de fazer o tempo voltar: a namorada do superman viva. Domínio. Genialidade e Delicadeza. Meu aqui e agora mais cheio de vida. Mais cheio de infância.




















































8 comentários:

  1. Ana, esta crônica está linda!!! Puxa que saudade destes medos... Talvez a inocencia tenha realmente um poder mágico! Parabéns por ter conseguido transformar seus sentimentos atuais (pavor público) numa memória tão bonita...

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  2. QUERIDA ANA, FIQUEI CHOCADO COM A SUA CRÔNICA, IMENSA SENSIBILIDADE, ELA POR SI SÓ JÁ DAVA UM LINDO LIVRO INFANTIL, "A MENINA QUE TINHA MEDOS",
    ACHO QUE VC DEVIA URGENTE ESCREVER UM LIVRO SOBRE ESSA CRÔNICA, ME PARECE QUE A RUTH ROCHA JÁ ESCREVEU ALGUMA COISA SOBRE O ASSUNTO, EU MESMO JÁ ESCREVI UMA MÚSICA QUE USEI NA PEÇA INFANTIL " UMA aVENTURA DO OUTRO MUNDO", QUE FALAVA : MEDO DO fUTURO,DO ESCURO, DE ALMA PELADA , DE PROVA DE MATEMÁTICA, ETC...
    vOU TE COBRAR ESSE LIVRO, É SÓ AJEITAR , A PERSONAGEM: A MENINA MAGRA E ESQUISITA JÁ EXISTE É ÓTIMA!!!
    aGUARDO O LANÇAMENTO, ME DIVERTIR MUITO LENDO, TB TIVE UMA INFÂNCIA MUITO PRÓXIMA DA TUA EM JACARÉPAGUÁ,
    SUCESSO,
    lUIZ

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  3. ana!tb gostaria de poder voltar no tempo da infância, aliás, da minha e de meus filhos, muitos medos poéticos!
    parabéns pelo blog!
    bjim
    miwa

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  4. Oi Ana, essa crônica abriu um lindo baú na minha memória, sua sensibilidade me sensibilizou.

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  5. Queridos, obrigada por expressarem suas impressões e sentimentos. É importante para o meu rumo!

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  6. Ana ...adorei essa crônica, lendo recordei alguns sonhos do passado.Me diverti com algumas passadas de sua vida..muito engraçado..parabéns pelo Blog.
    Beijão.
    Airton

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  7. Eu também tentava imaginar o Nada.
    Às vezes, eu ficava andando de olho fechado, tentando imaginar como era ser cega.
    Eu não tinha medo de loura, mas tinha medo de uma mulher maluca que eu via do quintal da casa do meu avô. Amélia.
    Eu tinha medo de vento.
    Linda sua crônica.

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  8. Querida Ana, tivemos medos parecidos, e hoje sei que tinha outra maluca lá no Rio, pensando as mesmas maluquices que eu, vc tbm ficava olhando o infinito?tentando achar o fim dele? ou a linha do horizonte do mar, pensando que se continuasse, furaria o céu e veria o que tinha por trás dele? Tbm acredita, aos 5 anos, q meu amigo Rodrigo, realmente se transformava no Spectruman (não sei escrever...era um seriado desses, Japoneses...do tipo do atual Power Roungers), no laboratório da casa dele, e a tarde estava na televisão, só prá eu assistí-lo. Chorava quando minha amiga assoprava aquela flor que perde suas folhas, porque ela me assustava dizendo que meu pai ficaria careca...eu voltava correndo prá casa, prá ver se ele ainda tinha cabelo, eu tinha os Flivics por companheiros, eles ficavam nos tijolos da parede do quintal, e falavam comigo só na imaginação...rsss E essa coisa do outro lado do planeta, eu tinha certeza que tinha alguém, em algum lugar, fazendo exatamente a mesma coisa que eu...Também achava que só eu tinha tanto cabelo e dente no mundo...rsss

    Amei essa crônica. Parabéns. Aguardarei notícias, que certamente chegarão, de suas crônicas, sendo encenadas num teatro...creio nisso!Deus te abençoe nesse projeto! Flavia Kemper

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