sábado, 31 de outubro de 2009

Objetos inanimados




A mãe tinha apontado a prateleira de cadernos que poderiam ser escolhidos de acordo com o número de folhas e tamanho pedido na lista de material, mas principalmente pela capa. Personagens famosos, capa dura, alto relevo encarecem um caderno que por dentro tem exatamente a mesma função de um caderno com capa simples: anotar. A menina gostou, o limite deveria facilitar a escolha. Mesmo assim, enquanto a mãe comprou todo o resto do material, a menina deteve-se diante de uma única prateleira. Olhava, comparava, escolhia, pegava. Olhava outra vez, tentava achar motivos para levar este e não aquele. Imaginava-se colocando aquele caderno dentro da pasta, depois imaginava a mesma coisa com o outro. Imaginava-se fechando o caderno e vendo aquela capa no final da aula e não a outra que deixaria ali, na prateleira, para sempre, para nunca mais voltar, para nunca mais vê-lo, nunca escrever nele uma linha, uma letra, uma data. Dois cadernos iguais não amenizavam a angústia. Cada caderno era único. Era esse o dilema. Para seu alívio, a lista pedia três cadernos. Pelo menos três cadernos ficariam sobre a sua guarda e seriam bem tratados, teriam uma vida boa. Pensou se levava três iguais porque eles formariam um grupo de cadernos trigêmeos, o que amenizaria a solidão deles ou se levava um diferente do outro para que eles – os cadernos – pudessem ter um convívio mais divertido. Com muita dificuldade decidiu levar cadernos diferentes, cada um representando sua pilha. A mãe, desconhecendo aquele universo mental silencioso, perguntou com simplicidade:

-Ainda não escolheu?


Ah se fosse assim, tão fácil!


- Tô quase.

O problema estava quase resolvido, dois dos três cadernos já estavam em seus braços, escolhidos. Mas o terceiro causava grande incômodo. Estava entre dois muito parecidos, diferentes somente na cor de fundo. O caso era que um deles, somente pela cor, ficaria para trás, um deles ficaria com o estigma de ter sido rejeitado numa escolha tão rigorosa, tão demorada. Esse sim teria motivos para ficar deprimido a vida toda. Descartado depois de ser tirado e recolocado na prateleira tantas vezes! Foi até a mãe:


- Posso levar quatro?


Em meio às contas no tumulto da loja, a mãe não ouviu a voz baixa da menina que não repetiu a pergunta e foi em silêncio até a prateleira para devolver o quarto caderno. Antes de sair, fez um carinho na capa e disse baixinho:

- Tchau, boa sorte!

Ficou com o de fundo marrom rajadinho de preto. Não foi exatamente o que mais gostou, mas achou que o caderno de fundo azul rajadinho de preto, encontraria mais facilmente um dono que o achasse bonito, afinal capa marrom rajadinha de preto é uma coisa muito triste. A moça da caixa registrou os preços. Estavam comprados. Depois da escolha estava um pouco melhor, mas não conseguiu se livrar, assim rapidamente da estranha sensação. Será que algum dia, alguém poderia entender tal melancolia? Não importa. Estava feito. Não tinha mais como voltar atrás. O azul rajadinho de preto estava à mercê do destino. Para sempre afastado. Imaginava a loja fechando. A porta de correr sendo desenrolada com o gancho, lá de cima até a pedra mármore do chão. Dentro, as prateleiras no escuro.


Quando a tristezinha vinha lá no fundo, cruzava os dedos bem forte e imaginava o caderno azul feliz. No dia seguinte, a loja ia abrir.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A infância acaba





















Esta semana senti realmente saudades da minha infânicanos70. Senti saudade de sentir medo dos garotos fantasiados de Bate-bola no carnaval. Eu, do lado de dentro do quintal, com a cara enfiada no portão, corria para casa, assim que eles apontavam na esquina. Senti saudade de sentir medo dos fogos de artifícios na virada do “Ano Bom", como dizia minha avó. Senti saudade de ter medo do “Sr. Alfredo”, personagem que vocês conhecerão, quando aparecer em uma das crônicas. Senti saudade do medo que eu tinha de trovão, de ficar presa em elevadores e em banheiros. Eu, como todas as meninas da época, tinha medo da mulher loura. Eu tinha medo dessas coisas, na minha infância. Tinha medo da cara do Presidente Geisel – eu achava que ele era estrangeiro! (também, com esse nome), tinha medo da Ditadura, mesmo sem saber o que era. Tinha medo dos ETs que apareciam no Fantástico, medo das Pirâmides do Egito, medo de um menino que, diziam, vivia numa bolha... Medo dessas notícias que criança não entende.

E tinha também vontades: de ser algumas das minhas personagens favoritas, de casar com os meus heróis preferidos – todos eles, um de cada vez, na sua época de alta temporada. Tinha vontade de "trabalhar na Sessão da Tarde". Vontade de ser bailarina. Vontade de conhecer um país, que uma garota bem metida chamava de “States”, e onde o meu pai tinha morado antes de se casar com a minha mãe. Ele tirava fotos como se fosse um galã. Lindo! (e é claro que eu pensava, “Se ele não tivesse voltado, eu teria nascido lá ou aqui”?). Vontade de ser de circo e de fazer expedições para a África, ao mesmo tempo, na mesma vida. Circo nas terças e quintas, África, segundas, quartas e sextas... Ai, ai, nem saber dividir o tempo e colocar a África para o início da semana e o circo para o final, eu sabia. Eu gostava das diferenças (ainda gosto) e dizia que ia tomar café para ficar preta e ia casar com um japonês para meus olhos esticarem. Queria me modificar.


Eu podia ser tão inocente que um dia, sentada no colo do meu pai, ele disse, olhando para o céu:

- É... Amanhã é o último dia do ano!!!

E eu perguntei:

- E depois, nós vamos todos morrer?!

À tarde, eu tinha a mania de imaginar o que estaria acontecendo em outro lugar, um lugar bem longe de onde eu estava, exatamente naquele momento. Imaginava a savana (que na época, eu nem sabia que tinha esse nome) com o sol baixando e depois ficando sem luz. Ficava intrigada como podia a Terra ser um planeta redondo, e os japoneses – que me disseram que viviam do outro lado do planeta, ou seja, embaixo – podiam viver de cabeça para baixo. Sem cair?!! Engolindo! Bebendo água sem babar! Fazendo tudo pendurado, meu Deus?


Pior, eu tentava imaginar "O Nada" (vocês faziam isso?):

“Se a casa, a rua, o bairro (do bairro, pelos meus limites, eu já pulava para o planeta) e o planeta não existissem. Se não existissem as pessoas, nem os animais. Nada. Nadinha, nadinha”.


Mas não tinha fim, sobravam sempre as mãos. Eu explicava:

- É que eu imagino o Universo, aí vem um par de mãos fazendo uma trouxinha nos Planetas, nas Estrelas, em tudo, como se fosse uma toalha de piquenique, dando um nó e jogando tudo fora, mas aí sobram as mãos... Então, eu imagino outra trouxinha, outro par de mãos e outra toalha para jogar fora as mãos que tinham sobrado, mas aí, outra vez, sobram as mãos...

E meu pai tinha tempo para me dizer:

- Pára de pensar nessas coisas que você vai ficar maluca. Eu já tentei imaginar o nada e nunca consegui...

Com onze anos, eu já tinha bastante altura e alguns adultos, daqueles bem sem assuntos, sempre diziam a mesmíssima coisa, todos os dias, quando me encontravam com a minha mãe e o meu irmão voltando da escola:

- Essa menina está cada vez mais alta, não é possível !!!!– isso, logo depois de comentarem a minha magreza.

E eu, na minha infância e pré-adolescência, podia ter medo de ser a mulher mais alta do mundo. "E se eu não parasse de crescer? Até morrer? Como ia ser?"

Tinha medo de ser muito feia, feia fora do normal, horrorosa. Sabem “feia de doer”? Pois é. Imaginem esses dois medos juntos: a mulher mais alta e mais feia do mundo!!! Putz, era demais. Era medo pra ninguém botar defeito.

Aprendi a ter medo de falar mentira. Minha mãe tinha me ensinado assim:

- Cada um tem um lugarzinho, lá no céu e, cada vez que você fala uma mentira, nasce uma manchinha amarela no seu lugar.

Eu, que gostava de inventar o que não tinha acontecido, gostava de imaginar, gostava de contar e aumentar, passei a ficar imaginando o céu azul e o meu lugar com algumas manchinhas amarelas que iam se encaixando como peças de um quebra-cabeça. A didática setentosa funcionou, eu fiquei com medo do meu pedacinho no céu ficar todo amarelo e eu não poder entrar nele, por causa disso. Durante um bom tempo, eu pensava, inventava, mas não falava.

Eu tinha medo de levar choque no chuveiro, de engasgar (uma espécie de maluquice), tinha medo de agulhas (maluquice dois). Tinha medo e também curiosidade do desconhecido, do escuro. Medos da infância, que depois passam.


Esses dias, ouvi a última frase de uma conversa de duas mulheres mal humoradas:


- A única coisa ruim da infância é que ela acaba.


(... Durante a semana, escolho a crônica a ser postada, tenho meus critérios. Nesta semana - de confronto e violência no Rio de Janeiro - a crônica é este apanhado improvisado sobre os medos e vontades normais de crianças de qualquer época, de qualquer lugar. Nenhuma das crônicas já escritas fazia sentido).


Se eu pudesse realizar um só desejo impossível, pediria o poder de fazer o tempo voltar: a namorada do superman viva. Domínio. Genialidade e Delicadeza. Meu aqui e agora mais cheio de vida. Mais cheio de infância.




















































sábado, 17 de outubro de 2009

O calção florido




Era o ano do C. A. Na primeira reunião, a diretora pediu aos pais que deixassem na escola algum auxílio para ocasiões especiais. Uma muda de roupa, uma toalha, uma galocha... Tudo com o nome de cada um pra não confundir. Tudo guardado no armário da parede, organizado pela professora.

- Tia, o Mário derrubou o suco na blusa.

A professora abria o armário, pegava a blusa sobressalente, deixada pela mãe do Mário, e trocava o Mário. A blusa com suco ia para um saco plástico e o bilhete, na caderneta:

“Mamãe,
O Mário hoje derramou suco na blusa do uniforme, por isso está indo embora com a blusa reserva. Ficou tudo bem. Por favor, mande outra blusa para ficar aqui no armário. Emergências acontecem. Um abraço. Tia Luisa.”

Esse rodízio de short, blusa, toalhinha era comum. O armário embutido tomava toda a parede e quando a porta de correr era arrastada, fazendo um barulho rascante no trilho, era um acontecimento.

- Olha! Minha toalha.
- Meu sabonete!
- Minha capa!

Quando a porta era fechada, havia um lamento geral.

Meninos trocavam mais do que meninas. Eram mais estabanados. Ficavam mais suados. Derramavam mais suco. E volta e meia, na correria, uma quina de mesa e uma blusa rasgada: lá ia a troca, lá ia o saco plástico, lá ia o bilhete.

Um dia, bateu o sinal do recreio. As crianças se espremiam na fila.

- De quem é aquela merendeira esquecida na cadeira?
- É do Jorge, ele esquece todo dia!

Jorge estava sentado com o tronco pra baixo da mesa catando alguma coisa. Disse à tia que não queria ir para o refeitório, queria comer a merenda na sala. A professora estranhou. Logo, um espírito de porco denunciou:

- É porque ele fez xixi nas calças, tia.

A servente levou a turma para fora. A professora abriu o armário. A mãe de Jorge tinha deixado um calção de chitão florido, inadequadamente escandaloso: um fundo azul com uma imensa papoula rosa. Elástico na cintura e perninhas bem frouxas, na certa pra ficar bem confortável. A professora não pôde ajudar, não havia no armário outro short que coubesse em Jorge. Nada que fosse mais parecido com o uniforme, nada menos florido. A operação limpeza incluiu um banho.

Na fila da saída, Jorge, de calção florido, era achincalhado pelos cochichos da turma.

- Foi cocô.
- Tá cheirando.
- É short de menina.
- É porque ele é pobre.
- Tá sem meia.
- Tá com sandália.
- É porque escorreu.
-Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh. Estão muito agitados. Falando muito. Querem ficar sem recreio, amanhã?

Discreta, a professora entregou à mãe de Jorge uma sacola volumosa: toalha, short, cueca, meia, conga. Na caderneta, o bilhete:

“Mamãe,
Por favor, mande um short reserva mais simples para o Jorge. Pode ser azul ou preto. Tia Luisa.”















sábado, 10 de outubro de 2009

O Come Pedras







Ela era ruim de comer. A mãe fazia de tudo. Prato com carinha, aviãozinho, promessa de presente, de passeios, de chocolate. Até almoçar no cangote do pai dando voltas no quintal, uma pra cada colherada engolida, tudo era feito... Era um suplício a hora do almoço. Por mais caprichado que fosse o cardápio, a menina fazia bico, trancava os dentes, virava a cara, empurrava o prato. Paciência era pouco!

A família se revezava na árdua tarefa de dar a comida. Não se podia deixar para a babá esse intenso exercício de amor. Até os vizinhos sabiam do caso. Estimulante de apetite não funcionava. Não dava pra saber como continuava a crescer sem comer. Os pais sofriam mais que todos.

Um dia, na hora da desventura do almoço, estavam numa lanchonete no centro da cidade. A menina continuava recusando tudo o que lhe era oferecido. Uma irritação! Depois de muitos argumentos inúteis, o pai apelou para a dura realidade da vida:

- Menina, a gente faz de tudo pra você comer e você não quer! Tanta gente com fome no mundo... Quero ver o dia em que te faltar... Tem criança que come até pedra! Sabia?

Naquele instante, a menina que fazia círculos com a cabeça fugindo da colher, parou. Aquilo era demais. Como seria engolir uma pedra?! Pode alguém comer pedra?! Que tipo de gente comia pedra? Os pais resolveram comer. Quando ela tivesse fome ia pedir alguma coisa.

Em seguida, entrou na lanchonete um menino maltrapilho, muito magrinho, de cara triste e caixa de engraxate na mão:

- Tio, tem uma moeda?

A menina adiantou-se para não perder a oportunidade:

- Ei menino, você come pedra?!

O menino não respondeu, saiu. A menina estava impressionadíssima, sem ar, querendo uma explicação. O pai decidiu manter o mistério, quem sabe o medo de precisar comer pedra não abrisse o apetite da enjoada?

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O piolho bailarino

A mãe tinha orgulho de anunciar a mania de limpeza:

- Quantas vezes eu já levantei da cama à noite pra tirar o pó da penteadeira?! Eu vejo uma poeirinha no reflexo da luz e pronto, não consigo dormir!

O uniforme dos filhos era impecável e os cabelos, cortadíssimos, lavadíssimos, penteadíssimos. A mãe, é claro, tinha pavor de piolho.

Nas férias, o garimpo era feito com pente fino regado a álcool. Depois, cabeça enrolada em fralda com remédio da latinha que fazia "poc-poc", soltando uma poeira branca fedorenta.

A vida da família era toda no bairro. No carnaval, as crianças saíam num bloco de rua que se concentrava na praça, dava a volta no quarteirão e acabava na praça. Durante o desfile, a mãe ia do lado de fora do cordão, conversando com as amigas, tirando fotografias:

- Vira pra cá!

Naquele dia, a menina - fantasiada de odalisca - sambava pouco, mas para desespero da mãe, a cabeça ela coçava sem parar.

- Tira-a-mão-da-ca-be-ça... Olha o passarinho!

A coceira era tanta que a menina suspirava... E o estandarte de coração ia entortando, entortando...

- Isso é alergia ao xampu novo! Só pode ser! – se justificava a mãe embaraçada.

A menina, coitada, cara franzida, não parava o coça-coça. Cada vez mais rápido. Cada vez mais forte. Cada vez mais agoniado... Arrrrrgh! Largou o estandarte e enfiou a duas mãos na cabeça. Perdeu o rumo, ficou pra trás da ala dos pariôs, pra trás da ala dos piratas, pra trás da ala das baianinhas. A mãe chamava a menina ensurdecida, entorpecida pela coceira. A bateria se aproximava e a menina coçava e coçava.

A mãe, então, não duvidou, pulou o cordão e foi atravessando o bloco entre surdos e tamborins, foi levando a menina pelo braço, meio suspensa:

- Vamos pra casa, que esse eu pego na unha. Ah, se pego!