sábado, 26 de setembro de 2009

O cão Pingente






Era um domingo meio enjoado com mormaço. O compromisso às cinco da tarde era um aniversário. A mãe tinha comprado uma lembrancinha. A amiguinha da escola fazia 11 anos. A casa da amiguinha era pequena, quente. O pouco espaço do quintal cimentado e esburacado era ocupado por um carro velho coberto com uma lona de caminhão, debaixo de um teto de zinco abaulado. Conversa de menina, só no quarto pequeno, enquanto os meninos fariam brincadeiras sem graça arremessando canudinhos e gritando com as cabeças na janela, impossível de ser fechada por causa do calor. Estudava com a amiguinha desde o primeiro ano de escola e já havia ido a todas as festas anteriores, um tédio cada vez maior. Mas, como criança não tem querer “Vai sem vontade mesmo!”.



Foi. Entregou a lembrancinha, deu abraço e beijo na amiguinha. A mãe avisava do portão que voltaria às nove. Até lá: gritaria, mini hot dog, guaraná, cajuzinho e latidos. Uma mistura de poodle com vira lata velho, xexelento de pelo amarelado e com a arcada debaixo deixando os dentinhos à mostra. O bicho latia, correndo atrás das crianças, dando com o focinho nas quinas e nos velocípedes. Sentada na mureta da pequena varanda, sentia pena do animal. Língua pra fora, desorientado. De vez em quando, jogavam para ele um pedacinho de salsicha, um ovo de codorna pela metade. Saltou da mureta esticando o braço e estalando os dedos “Aqui, bichinho, aqui...”. De um salto com a boca aberta o bicho grampeou o colo da menina que com o tronco inclinado pra frente chegou a vê-lo dependurado em sua pele com os olhos esbugalhados. Pendurado na sua pele como um pingente de colar. Foi retirado com uma cotovelada na testa. Saiu sem latir, sumiu. Ninguém viu nada. Uma sede repentina lhe veio à boca. Apertou o meio o peito numa sensação esquisita. Afastando o decote do vestido, viu a pequena marca da dentada: um estufadinho de sangue, escuro. Tinha ouvido que em caso de mordida de cachorro, trinta e cinco injeções eram aplicadas na barriga. Decidiu não contar nada a ninguém. Voltou a sentar na mureta da varanda. Ainda eram cinco e meia.

impressões de décadas em nós



Um dos intervalos de contagem do tempo é a década. Por que contamos o tempo assim? Podemos pesquisar razões que já foram analisadas ou podemos usar as respostas que, simplesmente, nos parecem fazer sentido. Ah, é assim porque... A década traz um número redondo. 10 é um número que indica um limite bom:"Tirou nota 10". É usado como adjetivo, no lugar de uma palavra, para elogiar uma pessoa ou evento. Dizemos "Ele é 10", "O livro é 10", "O show foi 10".


Cultura, costume, matemática. Geralmente (se não morremos muito cedo, desculpem por trazer a morte à tona) vivemos ultrapassando décadas. Falamos do que nós mesmos vivemos. E, se acontecer com você, que alguém, da sua idade, te diga "Eu nunca vi isso na minha época!", é muito provavel que você se espante e defenda a sua experiência, "Como? O que é que você tava fazendo na vida que nunca viu isso? Em que planeta você morava?". As décadas que vivemos são de nossa propriedade e ninguém, ninguém (segura o Khallil -"O que você fazia na vida que não lembra desse comercial de TV?") nos pode tirar!


Há, com certeza, explicações óbvias de porque - mais do que apenas contar o tempo - podemos saber que "aquilo" pertence a uma determinada década. Reconhecemos a sua personalidade nos formatos, nas belezas e feiuras, nas roupas, nos cabelos, nas músicas, nos filmes. Podemos saber imediatamente que "Aquilo deve ter sido em...",(é claro, acertamos mais quando foi coisa da década que vivemos) apenas vendo uma foto.



É fato: essas personalidades chamadas décadas ficam impressas em nós, pra toda a vida. Fazem parte da nossa matéria. Fazem parte da nossa alma.



Numa conversa com uma pessoa que você acabou de conhecer, e que tem quase a sua idade, lá pelas tantas, você conta um detalhe da sua infância, geralmente para explicar uma consequencia atual. E isso tendo quase certeza que é um detalhe "só seu", e é claro que é. Você está revelando algo íntimo. Mas, a pessoa - não para sua ofensa, mas para seu contentamento - diz com um entusiasmo imediato "Eu também! Eu também passei por isso! Lá em casa era igualzinho!".



E isso que se dá, essa atração, essa cumplicidade, entusiasmo ou melancolia - e em certos casos um alívio de se sentir absolutamente normal ou menos solitário nas estranhezas, tenho a forte impressão que não se dá pelos fatos em si mesmos. Se dá pela sensação de que em lugares diferentes, pessoas diferentes viveram coisas parecidas e - arriscamos dizer assim - se sentiram exatamente do mesmo jeito, porque, simplesmente, "naquela época era assim".


E a década em que nos damos por gente parece ser aquela onde tudo começou. Pra mim, é tudo dos anos 70: a televisão, o carro, a geladeira, o picolé, o guarda vestido, o fogão, o ônibus, o relógio, a escola, o avião, as botas ortopédicas, os óculos escuros e os óculos de grau, a maria-chiquinha, a Susie, a Barbie, Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, o carnaval, todos os seriados e programas de TV (incluindo seus artístas), os ET's, a ida do homem à Lua, a discoteca, tudo - não importa se coisas nessa lista vieram antes ou se começaram depois - pra mim, tudo foi inventado e realizado naquela década. Pra mim, eu tenho a impressão de que foi bem alí, naquela década, que eles apareceram no mundo...


Então, para as privilegiadas vítimas que viveram a infância na década de 70 e para os curiosos, os sem nada melhor pra fazer, os stressados, os filósofos, os antropólogos, os economistas, os compulsivos, os filantropos, os psiquiatras e psicólogos, os carnívoros e os vegetarianos, os jornalistas, as ex-feministas, as ainda feministas, as donas de casa, as professoras, as manicures e cabelereiras, para os alfaiates, militares e carnavalescos. Para os especialistas e os especialistas em coisa nenhuman. Para os positivos operantes e para os aposentados...

Comecemos um crônica onde as personagens principais são crianças que viveram nos anos 70. Confira se você ja esteve nessa festa ou em algo bem parecido...