sexta-feira, 24 de setembro de 2010


A Deslocada



A turma da sétima série era dividida em grupos. As fortes, chamadas pelas louras de gordas; as louras, chamadas pelas fortes de Barbies, as tímidas, bastava uma usar óculos e eram classificadas de “quatro olhos”. A guerra de nervos era por tudo e por nada, bastava uma jogada de cabelo, uma estufada de peito, um pirulito descuidado. As fortes melhores no esporte, as louras melhores nas balizas dos desfiles, as tímidas melhores nas arguições. Não havia porque mexer em nada. A coisa funcionava assim. Normal. Estranho era não ser nem gorda, nem loura, nem quatro olhos e querer transitar nos grupinhos como se as divisas não existissem.
A deslocada era exatamente esse tipo. Desengonçada e desavisada, usava uma saia com pregas tão largas que parecia uma arquibancada, as meias iam esticadas nas canelas, simplesmente ridículo! E se uma perdia o elástico ficava por isso mesmo: uma em baixo a outra em cima sem que pra ela fizesse diferença. A deslocada era tão originalmente deslocada que não queria mudar nada, só achava que podia não preferir nada nem ninguém, assim passeava pelas fortes, pelas louras, conversava com as quatro olhos. Mas lei é lei e é para ser cumprida, e o dia chegou que a professora determinou um trabalho em grupo. A deslocada pediu vaga no grupo das fortes, negada. De grupo em grupo acabou pedindo para fazer um trabalho individual. A resposta foi um sonoro NÃO. A deslocada fez uma segunda rodada, nada conseguiu, foi preciso ir à coordenação.
A coordenadora abriu a porta da sala 401 bruscamente, uma das mãos na cintura a outra balançando a caneta no ar, “Eu quero saber agora qual é o grupo que vai aceitar esta coleguinha.” E anunciou o castigo, após uma pequena pausa “Ou isso ou a turma toda um mês sem recreio, sentados no pátio, colados na parede pra todo o colégio ver”. Olhares rápidos e todas as representantes dos grupos esticaram os braços pra cima, inclusive dois meninos. “Pode escolher, minha querida”. A deslocada verdadeiramente não sabia escolher, bastava um grupo, mas ninguém baixou o braço.
Entrou no grupo das fortes, “Qualquer problema de entrosamento é só voltar na minha sala que eu resolvo no ato”.
A primeira tarefa era escolher na casa de quem a pesquisa seria feita e quem levava o que para o lanche. A deslocada ganhou um papelzinho dobrado. Abriu. “Tua parte tu faz na tua casa”.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O Presente de Natal






Os primos eram vizinhos e todos os dias brincavam juntos. Refresco da casa de um, biscoito da casa do outro. Tirando o horário de estudar, as idas aos médicos e os castigos, os três eram um grude o ano todo: a prima e os primos. Nas férias, dormiam e acordavam juntos: Pique Cola, Pique alto, Pique Bandeira e Baleia, Queimado, Amarelinha, Elástico e Bicicleta... E se chovesse, Passa anel, Batalha Naval, Banco Imobiliário, Pega Vareta, acampamento no beliche.



Mas, a prima era mais rica... E implicante. A satisfação maior era mostrar seus presentes, sempre a última novidade da televisão. Bonito, caro, bom. Os primos ganhavam a imitação, que não passava na TV, menos bonita, mais barata e visivelmente inferior.



Mal passava a noite de Natal e lá vinha a prima, no dia vinte e cinco, logo de manhã, com a boneca ou o patins ou o vídeo game ou o walkman ou a máquina de fotografar, ou o relógio a prova d´água... Depois, como quem não quer nada, perguntava:

- E vocês, ganharam o quê?

Uma vez, o primo mais velho, antes do irmão menor abrir a boca, disse misterioso:

- Nosso presente esse ano é secreto. Ninguém pode saber.
- Por quê? – perguntou a prima.
- Porque sim, minha mãe não quer que a gente conte pra não dar confusão.
- Por quê?
- Por que só a gente é que pode brincar. Se as outras crianças souberem, vai fazer uma fila aqui na porta.
- Que mentira! Vocês tão dizendo isso pra eu ficar com inveja.
- Não acredita? Melhor pra gente, né irmão? - disse o menor ainda sem saber a idéia do mais velho.
- Cala a boca pirralho. A conversa é entre os grandes! - disse a prima irritada.
- Pode falar o que quiser, a gente não vai te mostrar.

O golpe tinha dado certo. A prima estava furiosa e com muita inveja daquilo que ela nem sabia o que era. Ela perguntava, eles faziam mistério, ela desdenhava, eles riam.

- Então tá, eu não vou querer brincar com o presente secreto de vocês, não preciso dele. Mas se é verdade por que é que vocês não dizem o que é? Só ficam falando “secreto, secreto”?

O primo, então, revelou em voz baixíssima:

- É que aqui dentro dessa parede do meu quarto tem uma casinha, com tudo que uma casa de verdade tem, tudo, tudo, só que é tudo miniatura, tudo pequenininho. Só eu e meu irmão podemos entrar.
- Ai, que mentira!! Como é que pode ter uma casa dentro da parede. Nem tem espaço! Que mentira! Eu sabia que era mentira. Que idiotice! Quem é que pode entrar dentro de uma parede, nem tem porta!
- Tem sim, tem uma porta secreta que só abre quando a gente quer.
- Mesmo assim não dá pra uma pessoa brincar dentro da parede, mentiroso!
- Quem disse que a gente entra do nosso tamanho? A gente toma uma pílula e fica pequeno. Aí, a gente entra.
- É, e minha mãe não deixa mais ninguém, só pode a gente.
- Mentira garoto, teu nariz vai crescer, o nariz dos dois... Por que é que vocês não entram agora, então, hein? Cadê o remédio pra ficar pequeno?
- Eu só entro quando eu quiser.
- É, isso mesmo. Vai pra sua casa, vai, brincar com a sua boneca...

A mãe dos meninos, que ouvia a conversa se divertindo, foi interrogada pela sobrinha:

- É verdade, tia?!
- Verdade, verdadeira.
- E custou caro. Os olhos da cara! – se meteu o tio para desconserto da invejosa.

Completada a mentira, pai, mãe e filhos ficaram olhando a prima que foi ficando vermelha, respirando alterada, tremendo os lábios e marejando os olhos até sair correndo pra casa com seu presente caro, antes do choro explodir alto.